quarta-feira, janeiro 12, 2005

Efeito da Gravidade por Álvaro Domingues

Ando mesmo sem inspiração e tempo para escrever. No entanto há pessoas a quem não falta inspiração e génio. É o caso de Álvaro Domingues.
Aqui fica mais um seu texto fantástico a raiar o surrealismo nacional.

"Ia a incubadora aos pontapés e à estalada a caminho da reciclagem mecânica e orgânica, quando apareceu a ambulância a alta velocidade debaixo de um intenso tiroteio, assim como nos filmes com "snipers" em cima das árvores e espichados das janelas e bombas de fragmentação a cair, a cair. É verdadeiramente problemático o estado a que chegou o Serviço Nacional de Saúde.

A criança que estava na berma suspendeu a limpeza do ranho que guardava num saco de plástico candidato a um Guiness pelo maior saco plástico cheio de ranhos de uma criança só, que depois seria pendurado na maior árvore de Natal, por sua vez levada para o maior desfile de Pais Natal ou Pais Natais. Como disse? Não interessa agora.
O inocente ranhoso morreu instantaneamente atingido de viés por uma placa da prevenção rodoviária que a ambulância arrastava na vertigem da sua cavalgada de sirenes e relâmpagos azuis, ti nó ni. Paz na estrada, já que noutros locais é ainda mais difícil.
O anjo da guarda preencheu o relatório do acidente e aplicou a respectiva coima. Tudo se passou muito rapidamente. O menino deu a mão ao anjo e descolaram na vertical 3, 2, 1, 0 pelos ares, com um só estremecimento de asa.
O planeta azul só começa a ser interessante quando já não se sente o efeito da gravidade, pensava a alma do infante.

Na berma oposta, um homem de gravata vistosa oferecia um alvo pintado nas costas a uns atiradores de facas. Se fosse um anjo não era grave, porque os anjos não têm costas, como se sabe. O espectáculo era enfadonho.
Pior, só duas semanas seguidas com imagens de devastação, dor, miséria, morte e turistas no Sudeste asiático. Sim, claro, agora já não vou ter todas as condições de férias que iria ter se por acaso não tivesse acontecido nada disto. Por outro lado, estou contente, porque vejo as coisas mais ao natural, como elas são, dizia a tonta para a TV.
Qual é a diferença entre um morto e um desaparecido? Um desaparecido morto é a mesma coisa que um morto desaparecido? Quanto valem quatro desaparecidos em cento e cinquenta mil mortos?

Estranho mundo. A cara do homem de pau apagou-se dos cartazes por causa da carreira académica. Os desígnios dos deuses poderão ser insondáveis, mas a carreira académica tem também grandes mistérios e poderosas razões.
A potência do rio varreu o segundo homem da fila dos pescadores à linha. Onde vai o rio buscar tanta força se é tão escasso o que brota da nascente e vai o tempo tão falho de aguaceiros? Não se sabe.
Pôncio Pilatos despejou a bílis e lavou as mãos no cenário doméstico, em directo, a cores e ao vivo. Contrariando a história, Marco António ainda é capaz de trair César nas escadarias do Senado. Se a relva é fresca enquanto houver quem regue, por que é que não se vende a terra do jardim para acabar de vez com o défice? Como disse? Disse défice, não é patriótico mas dá que pensar.
Quantas vezes mais irá o outro aos estaleiros de Viana do Castelo mostrar o guarda-roupa? Maldito aquele que puser a minha cara no reclame do Skip com "baking soda", porque todo o discernimento lhe será retirado e se cobrirá de chagas e hérnias discais. Ai a vida está cara! Vamos para S. Tomé a ver se é verdade.

Faz-te leve, Maria Augusta, que tudo isto é nada. Por mais que uma vez já do céu choveram sapos. Já um raio atravessou uma cidade inteira e nem uma lâmpada se fundiu. Já morreram tantos, outros esfolados vivos, outros queimados, outros lançados às feras, outros esmagados em lagares de pedra. Já passaram milhões de anos e ainda há pegadas de dinossauros. Há exércitos de ratazanas ocultas nas ruínas. Há milhões de lesmas, de gatos enfezados. Há homens que não falam. Há mulheres prenhes que se recusam a parir. Há olhos que não dormem. Há ouvidos a estalar com os silêncios que habitam as abóbadas das catedrais vazias.

Contudo, floriu ontem o ramo de uma cerejeira e Janeiro vai a meio. Um único gomo, túrgido, urgente de vida, e nem sequer ainda a última folha se desprendera daquela árvore. Fracos presságios, me disse quem sabe que nem só as pessoas enlouquecem. Entre, pois, a música.

Primeiro, em pianíssimo, uma prece de violinos que se vai erguendo em registo sobreagudo até as cordas rebentarem. Pausa para mudar as cordas de sítio e afinar de novo.
Segundo andamento. Recomeçar. O naipe das tubas alinha-se à frente do palco, arranca os pistões e enfia os instrumentos pela cabeça. Entrada dos contrabaixos em uníssono. No fosso da orquestra, procede-se à matança dos porcos. Visivelmente emocionado, o maestro dá um sinal discreto ao coro e às flautas transversais. O coro retira-se em sinal de protesto. As flautas transversais arremetem de frente e em contra tempo. Em desespero, entra o naipe da percussão "ad libitum" e em fortíssimo. Assustados, os porcos galgam o fosso com as facas ainda espetadas e espatifam tudo o que encontram. Cai o pano e ouvem-se os aplausos gravados de uma plateia que fugira em pânico. Os porcos agradecem, limpam as facas aos cortinados, comem os açafates de pepinos que a produção ofereceu e retiram-se para os camarins. Fim da primeira parte. Só muito dificilmente haverá segunda.

Bravo! Apagadas as luzes, é mais clara a respiração da noite."

2 comentários:

beatriz disse...

muito bom mais eu quero outra coisa eu quero efeito da gravidade ta bom mais mesmo assim obrigada

vbm disse...

Este Álvaro Domingues é o geógrafo da Universidade do Porto?