terça-feira, dezembro 12, 2006

ainda sobre a morte do tirano

Pinochet não foi julgado, não foi condenado, morreu impune.
Contudo resta esta suprema ironia - a filha do homem que ele mandou torturar e matar, a mulher que ele mandou exilar, foi quem hoje lhe recusou o funeral de estado.

Pinochet

À memória deste simpático senhor, amigo fraterno de ilustres personagens como Margaret Tatcher ou JPII, aqui fica um excerto de um poema de Ary.

In Memoriam

Que a terra lhe seja pesada.
Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos,
Se lhe soltem os dentes e a fome fique intacta
E a alma, se a tiver, que lha fustigue o vento
E arrase com ela a memória gravada
Na lembrança demente dos que o choram.

(...)

Que o nome que era o seu o persigam os ecos,
O gritem no deserto as gargantas com sede,
O murmurem no escuro os mendigos com frio,
O clamem na cidade as crianças com fome,
O soluce o amante de súbito impotente,
O maldigam no exílio as almas sem descanso.

Que o nome que era o seu seja a bandeira negra,
A pálpebra doente,
O vómito de sangue.

(...)

Que o sangue que era o seu o farejem os cães
Nas veias de seus filhos.
Que o sangue que era o seu se lhes veja nas mãos,
E lhes aperte os pulsos como algemas de lodo,
Lhes carregue o olhar como um sopro de infâmia,
Lhe assinale a testa como um escarro de fogo,
Lhes atormente os passos como um peso de lama.

Que o sangue que era o seu seja o rictus da tara,
A máscara de sal,
A vingança do pobre.
E que o Exterminador, no seu trono de enxofre, o faça tilintar os guizos da tortura
Até que o mundo o esqueça
E mais ninguém o chore.

in A Liturgia do Sangue (1963), Vinte Anos de Poesia (1983) e Obra Poética (1994)